segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

domingo, 4 de dezembro de 2016

True blue

tô no azul tô no fio na ponte na corrente no fluxo no relógio corre a hora exata não perdi o fio da meada não voei amarrada não ancorei o barquinho não saltei pra nunca mais tô no céu no fio que conduz o olhar ao horizonte na linha imaginária que recolhe os suspiros dos que se deixam conduzir / não há fim pois não há início é tudo azul do mar ao céu o vento bate no rosto e desata o medo amarrado em nós / a menina que numa tarde roubou o livro do seu pai (um dia é preciso parar de sonhar e, de algum modo, partir) é a mulher que carrega o símbolo do infinito no pescoço não há fim nem início uma leva à outra como o mar leva ao céu como o céu leva Amar

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Uma grande manhã como todas as outras

Em uma manhã como todas as outras, ela passou a acreditar nela mesma. Passou a respeitar os relâmpagos cardíacos que marcavam o nascimento dos seus sentimentos. Aprendeu a olhar sem filtro para eles, sem óculos escuros. Aprendeu a suportar a sua luz sem lágrimas nos olhos. Os relâmpagos justificavam a sua presença eletrizante, quando, muitas vezes, ela se colocava em sua própria defesa. Há uma conexão muito bela, própria dos movimentos da arte, entre a ideia e o sentimento. A maneira como eles se relacionam, a maneira como essas conexões acontecem, é o que diferencia as pessoas, o que faz com que elas existam. Pode, ao que tudo indica, ser o princípio desse acontecimento. Uma grande ideia provoca relâmpagos e gera fortes sentimentos. Uma grande ideia é igual a todas as outras, mas é uma ideia que, por algum motivo, atravessa o seu habitat cerebral e, em grande cintilância, corre do céu ao chão do coração provocando arritmias ou sustos. Um grande suspiro pode apaziguar a sensação de dor, quando um grande sentimento sai de seu habitat cardíaco e atravessa seu útero como um raio. Um grande sentimento é igual a todos os outros, mas é um sentimento que, por algum motivo, permanece nela e, dentro dela, se transforma. E se torna cada vez maior e mais luminoso, até que ela dê a luz aos berros, muito dona de si e de seu próprio corpo selvagem. Quando isso acontece, alguém de muita sorte, leva ao mundo a notícia. Entre aspas, que também significa dizer em voz alta. Hoje, uma mulher, fez nascer a sua ideia. 

domingo, 13 de novembro de 2016

Mulheres Aladas

Descobriu que os xales foram criados para enfeitar as sombras das mulheres que percorriam trilhas durante a noite. Assim elas abriam caminho em outros mundos. Além das folhas secas que corriam com o vento, nenhuma outra entidade ousava persegui-las. Os deuses das sombras acreditavam que as mulheres de xales tinham asas e eram anjos.

sábado, 29 de outubro de 2016

Trilhas Sonoras de Amor Perdidas

Dentro das pastas, entre as folhas de papel guardadas, encontro um texto de uma participação em uma peça. Foi na mesma época que conheci Porto Alegre e bradava aos quatro ventos: "deu pra ti baixo astral, vou pra Porto Alegre, tchau". Era dessas horas onde cai bem bradar pelo tchau. Na folha onde o texto da peça foi impresso (a mesma que usei para decorar a minha participação de duas noites no Theatro São Pedro) escrevi a lápis: "Let the photos be old", porque a personagem que interpretei, batizada de Patti Astro Girl, comentando a sua mixtape, dizia: "Deixe as fotos se tornarem antigas". Reabrindo as pastas concretas da memória, emocionada com o texto (é tão bom quando a gente se esquece e se arrepia outra vez como se fosse a primeira), reencontrei essa música na frase rabiscada e descobri que o seu lançamento foi no ano que nasci: 1978. Na peça, esse texto da mixtape, marcava a virada da personagem do Gui Weber, quando descobria que podia continuar a amar apesar de todos os fins. Era no fim da peça o momento do recomeço. Hoje, tirando caixas do coração, vendo as fotos antigas sem apego, num voo circular, vejo outra vez a peça terminar e me vejo, na luz de Beto Bruel, bem dentro do recomeço. Também hoje, Eduardo Beu, que dirige o projeto que participo em São Paulo, o Trovadores do Miocárdio, me disse que vou ler um texto de Paulo Mendes Campos, no próximo dia 2 de novembro, na Balsa, que se chama: "O amor acaba". Perguntei se não teria um texto chamado "O amor começa", e ele disse que é quando acaba que começa. Num déjà vu parecido com insight me sinto impelida a escrever que o amor sempre está lá. Aqui. Sem começar ou terminar, mas, pronto para ser sugado pelas bocas ("como se cada beijo tivesse uma nova sensação"), para dentro do corpo, do coração, da vida e das peças, em uma transformação sem fim. Em homenagem aos círculos que se fecham, às peças que terminam para recomeçar, às folhas de papel que voltam com o tempo e às palavras que devem se perder para sempre, celebro. "Let the good times roll".

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

A minha casa é um set

Essa madrugada, lembrei que desde o meu primeiro curta metragem, desde que comecei a viver a realidade dos sets, eu digo que quero ter uma casa com uma grua no jardim, um travelling no meu quarto, e uma sala com 3Ts. Eu que sempre procurei a minha casa por aí, que ainda a procuro pelo mundo, essa madrugada entendi que a minha casa provavelmente é um set.
Set é esse lugar onde as coisas são emprestadas, onde a vida segue um roteiro, onde podemos improvisar desde que isso não prejudique ninguém, onde fazemos piadas com os erros, onde a conexão com o momento presente é vital. É o lugar onde rimos e choramos sem esconder o rosto. É esse lugar onde o nosso melhor é tirado de nós pela dedicação, pelo olhar do outro, por saber escutar. É onde nos entregamos a um bem comum pela confiança do diretor de cena, que muitas vezes não enxergamos, mas que sempre nos vê e está sempre ali. E tudo isso me parece o mundo todo, a vida de forma pura, e ainda que eu more numa ficção, ela sempre vai poder ser real e familiar.
Quando era criança, coloquei um A no fim da palavra ator e marquei um X na profissão que eu queria ter. Hoje, a criança crescida entende que essa é mais do que uma profissão escolhida, é um pacto de sempre poder ver o mundo com assombro e encantamento. Esse mundo que nasce do set, que era o sonho da criança que eu fui, agora é a sorte da mulher que eu sou, tendo em vista que, como os papéis que represento, de set em set, a vida é uma oportunidade infinita. Da mesma forma que a alma se transforma através da persona, a atriz se transforma através da personagem. Na realidade destes sets as luzes não seriam protagonistas não fosse o brilho que vem de dentro. O desenho da luz que se cria fora é só o suporte para uma luz mais intensa, que se faz transbordar através do olhar.
No dia de hoje, depois do set de ontem e de todos os anteriores, meu olhar transborda a alegria de ver aquela criança que acendeu sua lamparina pra me guiar ao longo desses anos de estradas e de sets, numa paisagem de luz intensa. Lá está ela com a sua alma de atriz, sorridente, realizada e (não é pretensão dizer e não foi por querer rimar no fim): FELIZ.

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Rito

com gosto / arrancou agosto do calendário / tomou um banho de setembro / e foi dançar nua no bosque / em volta da fogueira / no seu bosque não há inquisidores / e / a grande fogueira não foi feita para os corruptos / fascistas / hipócritas / ou / para o preconceito / sobretudo / não foi feita para mulheres inocentes / o fogo é a chama da vida sempre acesa / é a chama que acende // o futuro nas mais brilhantes ideias / as calúnias que vem dos pactos dos homens / com o passado e suas hierarquias / são silenciadas pelos sons / das árvores ao redor / e do vento / ela dança nua / e ri enquanto dança / se mistura a cada um dos elementos / bem puta / bem bruxa // aos poucos / quanto mais ela ri / e mais ela dança / para ser bem clara / quanto mais / bruxa / e mais / puta / ela se sente / mais ela dissipa o ódio que emprestaram à estas palavras / e mais / o seu útero restabelece o amor que cicatriza todo o ódio proferido contra a sua natureza / ela é feita de água / ar / terra / ela é feita de luz *
* raio / estrela / e luar

domingo, 24 de julho de 2016

Baile

Meu primeiro eletrocardiograma deu erro. Eles chamaram de interferência. Pedi uma cópia com fins artísticos. Mas já haviam removido do computador.

Repetimos.

Meu segundo eletrocardiograma deu erro. Eles chamaram de alguma coisa do ramo direito. Mas não podia ser. A doutora acha que sou muito nova.

Repetimos.

Meu terceiro eletrocardiograma deu um terceiro erro. Mas eles chamaram de dentro da normalidade. Na lógica, o coração deu um baile.

Não foi necessário teste de esforço.

sábado, 9 de julho de 2016

Cidade invertida

Ontem, horas antes do calendário dar as boas vindas à lua nova, deixando para trás os dias luminosos vividos na festa literária, a estrada estava muito escura e me parecia tediosa e triste. No escuro sinuoso, o tempo fazendo suas curvas, eu ainda notava algumas luzes acesas ao meu lado, sobre as montanhas e entre elas. Olhando para a estrada à minha frente, de perfil para as luzes, me dei conta de que elas eram muito fortes para serem as luzes das casas ou das gambiarras elétricas embrenhadas no escuro. Então virei de frente para elas e demorei alguns segundos pra entender que havia passado tanto tempo me movimentando entre cidades grandes e cheias de nuvens, que já não me lembrava como era dar de cara com as estrelas. Tudo o que não era a estrada e as montanhas, e tudo o que não era escuro, era estrela. Muitíssimas lâmpadas de intensidades diferentes, desenhando uma cidade invertida. Uma cidade inteira de cabeça pra baixo que eu podia ver muito nítida. Foi de verdade a primeira vez que me senti muito acompanhada na vida. E foi como se eu encontrasse finalmente as duas peças invertidas do quebra-cabeça do mundo. O céu, uma cidade acesa, altamente povoada. E do outro lado o seu reflexo, onde eu me encontrava olhando para cima, na via entre as cidades, dentro do que seria o céu da cidade que eu via. Diante da possibilidade infinita que é poder ser guiada por aquele mapa imenso e brilhante, para poder percorrer com menos tédio e mais lâmpadas, as sinuosidades escuras dos fins e dos começos, das idas e das vindas. O céu é semelhante a uma cidade sem limites. E aqui, eu e você, e todos certamente, somos juntos um outro céu aberto, de corações reluzentes, mapeando novas constelações de possibilidades infinitas.

ps_ esse texto foi vivido no dia 3/fim da Flip 2016, escrito no dia 4 de julho.

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Alright

Eu detesto ressonância magnética. Também detesto dizer que detesto, mas nesse caso não tenho saída. Da primeira vez, deduzi em poucos segundos: é uma rave ruim. Pior: você precisa ouvir todo aquele barulho totalmente espasmódico sem se mover. De tempos em tempos a voz de uma mulher, sem rosto (porque não consegui imaginar), provavelmente de avental branco (foi o que deu pra deduzir), me pedia pra prender a respiração por 20 segundos (eu contei). Troço chato, mala, ruim, verdadeiro horror. Piora, imagino, pra quem tem os nervos à flor da pele, tipo eu :/ A sorte dos meus nervos é que não tomo contraste. Deve ter sido o livro de André Gorz pra Dorine que me deu esse medo. Sou leiga no assunto e, portanto, fiel ao meu medo. Não quero, acho estranho, pode me pedir de joelhos, eu não aceito. Agradeci a mim por ter dito não ao contraste. Busquei toda a concentração do mundo pra pensar em coisas que me transmitissem alguma paz interior... até que a minha memória musical me trouxe de bandeja a salvação. Numa dessas repetições tóin óin óin óin óin, ela encontrou num fichário antigo, registros da mesma repetição no início de uma música que eu ouvi em momentos alegres desta vida. Plim!: a música alegre passou a tocar na minha cabeça todo o tempo do exame, me permitindo ignorar com mais propriedade os outros ton ton ton, fa fa fa, tóins e óins deprimentes. Agradeço imensamente ao Supergrass por ter me acompanhado nesse exame. Por ter me feito resistir imóvel na máquina trazendo as danças pra dentro de mim, e permanecer ali, quase sorridente, repetindo "feel alright" pra mim mesma, a cada refrão, até o fim.