segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Serenata ao Contrário

Cristo de braços abertos iluminado à noite. De tão branco rasga o céu escuro. Eu ando pela Miranda Valverde deserta. Ouço os meus passos na calçada. Começo a ouvir uma música que aumenta de volume enquanto caminho. Antes do fim da rua a música encorpa a sua presença e toma conta de tudo o que está ao redor. Paro em frente à casa de janela imensa iluminada. Imagino os movimentos dos dedos que tocam as teclas do piano. Ouço a música. Estou plena, sorriso rasgando os lábios entreabertos como a luz do Cristo rasga a noite escura. A consciência do espaço ao meu redor é flor que se abre dentro de mim. Nos conectamos, eu e o espaço preto e branco da noite, com as cores da casa acesa e musical. Fecho os olhos e vejo a janela e o Cristo de braços abertos. Só volto a andar quando um casal e um garoto apontam na esquina da rua em que estou parada, barulhentos, cortando a atmosfera criada entre eu e a música, eu e as mãos do pianista, eu e a casa de janela iluminada. Caminhando desconectada me sinto órfã da beleza, então paro novamente na metade da Martins Ferreira, dou meia volta e retorno para o meu lugar de antes. À medida que me aproximo percebo que a música já não toca e que a janela imensa está agora tão escura quanto a noite e tão vazia quanto eu parada em frente a ela. Fico alguns instantes perplexa. Aos poucos a minha lembrança encontra as notas silenciosas e as repete. A música foi tocada pra mim, por um único e exato momento. Momento que eu arrisco chamar de mágico e que não se repete, mas se eterniza na minha memória através da intensidade do primeiro passeio da minha viagem.

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